Uma das coisas mais
misteriosas da vida humana é a passagem desta para a outra vida. Na verdade,
pouco se reflete hoje em dia sobre os Novíssimos (o fim último do homem: morte,
juízo, inferno, purgatório e paraíso). Esta meditação que a Santa Igreja sempre
incentivou é algo que sempre hesitamos em fazer... mas é a única coisa que podemos
ter certeza que nos irá acontecer. E como vai ser esta passagem? Estaremos
preparados?
Deus colocou ao nosso
lado irmãos e amigos para nos acompanhar neste caminho até a eternidade: as
pessoas e os Santos Anjos. O Anjo nos “protege, guarda, governa e ilumina”, não
apenas para “atravessarmos a ponte” como vemos nas pinturas infantis, mas para que
cheguemos ao Céu! Para ele nós somos como um Dom recebido de presente, como uma
semente que ele deve cultivar, para apresentar a Deus os frutos. Só que para
isso, ele precisa da nossa colaboração! E o que se torna um empecilho para que
o Santo Anjo nos ajude a ir para o Céu? O pecado, obviamente! E ele se manifesta
de inúmeras maneiras sutis que ferem a fé, a esperança e a caridade. E é
basicamente na vivência destas Virtudes, e no desdobramento delas, que o Santo
Anjo quer nos formar.
São Paulo afirmava: “Por
ora subsistem a fé, a esperança e a caridade... porém, a maior delas é a
caridade” (I Cor 13,13). Quando falamos de caridade, não significa somente “dar
esmolas”. Neste mesmo capítulo, o Apóstolo explica que a caridade é paciente, não
é invejosa nem orgulhosa, não busca os próprios interesses, não se irrita, não
guarda rancor, tudo suporta... Essa é uma lista que devemos lutar para pôr em
prática, pois se fizermos um honesto exame de consciência, veremos que são estas
‘picuinhas’ do dia-a-dia – e que às vezes não achamos tão grave – o que mais contribui
para ferirmos a caridade.
Veja em sua Bíblia o Salmo
132, que diz: “Como é bom... os irmãos viverem juntos... é como um óleo... é
como o orvalho...” A nós hoje esta linguagem pode parecer estranha, mas para o
Salmista, isso tinha um significado muito especial: o óleo da unção não era um
óleo comum; representava, além de uma grande alegria, uma honra, uma dignidade.
O monte Hermon, por sua grande altitude, tinha o topo coberto de neve, e podia
compartilhar com a árida planície que o rodeava, o orvalho e a água da neve
derretida... Isso representa a alegria, a honra e a bênção frutuosa que envolve
e transborda quando as pessoas vivem em união. “Ali derrama o Senhor uma bênção
eterna!”
Existe um provérbio
Congo que diz: “As pegadas dos que caminham juntos jamais se apagam!” Como é
bom quando caminhamos juntos e estamos felizes, sem desacordo, conflito ou
inveja! Quando um se alegra com o bem e o sucesso do outro! Mas como é triste
quando a convivência é ferida por julgamentos, antipatias, competições, inveja,
ciúmes, falsidades, por contar vantagem de querer mostrar quem sabe mais... E
isso é o tipo de joio que o inimigo quer semear em nossa família, entre os
parentes de modo geral, na nossa paróquia, comunidade, no ambiente de trabalho,
estudo, e até entre vizinhos!
Em um desentendimento,
nenhuma das pessoas ganha... pode até “ganhar” aparentemente no plano humano,
mas não no espiritual. Todas as vezes que cedemos a esse tipo de intriga, é o
inimigo que vence sobre nós... e o nosso Anjo perde! É uma batalha não só humana
- entre nós e o próximo, mas uma batalha espiritual - entre o Anjo bom e o mau!
Estaremos sendo marionetes nas mãos do inimigo, e impediremos nosso Anjo de nos
ajudar.
Santa Terezinha
escreveu que “só no último lugar não há inveja, nem aflição de espírito”, ou
seja, muitas vezes, é preciso deixar a outra pessoa vencer: na opinião, na
escolha, na decisão; é preciso ceder o primeiro lugar, para que a humildade
vença! “Procedendo assim, amontoaremos brasa sobre a cabeça da outra pessoa”,
nos lembra São Paulo (cf. Rm 12,9-21), ou seja, a atitude orgulhosa de uma
pessoa ao ser deparada com a acolhida humilde da outra, faz a primeira se
ruborizar de vergonha e reconhecer o próprio erro.
Mas aí surge outra
armadilha que nosso Bom Anjo nos quer salvar: muitas vezes somos levados por
uma falsa caridade. Se temos dificuldade com certa pessoa, nos vem o pensamento
“heroico” de fazer tal coisa para que a pessoa perceba que fomos bons com ela!
Sem perceber, somos levados por um orgulho camuflado, cheio de vaidade e vã
glória... No fundo do coração era uma competição: queríamos dominar, mostrar
que fomos capazes de aturá-lo sem que ele merecesse. Mas não é isso que São
Paulo se refere. Ele explica em outro lugar: “Ajudai-vos uns aos outros a
carregar os vossos fardos”, e logo em seguida diz: “cada um deve carregar o seu
próprio fardo” (cf. Gal 6, 2-5). Parece contraditório! Mas o significado é:
devemos sempre fazer da nossa parte na batalha da caridade, mas sem esperar que
os outros façam o mesmo em relação a nós! Se todos vivêssemos isso, a convivência
seria uma fonte de caridade verdadeira! Também devemos pensar que Deus jamais
vai cobrar de outra pessoa o que compete a nós, e vice-versa. Assim, não temos
porque reparar a vida dos outros; cada um terá que prestar contas a Deus de
acordo com o que recebeu!
Jesus e os Apóstolos nos ensinaram que devemos “suportar uns aos
outros” (cf. Col 3,13). A palavra suportar não deve ser entendida como algo
difícil, que temos de tolerar e sofrer, mas como “ser suporte”, um apoio e
guindaste para levantar o outro. E quando diz que se um irmão pecar contra nós
e não quiser se arrepender, devemos “tratá-lo como se fosse um pagão” (cf. Mt
18,15-17), não significa que devemos desprezá-lo ou atacá-lo; não é esse o
significado. Como Jesus nos ensinou que devemos tratar os inimigos? Tratar como
um pagão é perdoar 70 vezes 7, é começar do zero! É conquistá-lo através da
humildade e do amor!
O humilde tira
proveito de tudo, e só na humildade se alcança a sabedoria, maior do que
qualquer ciência do mundo. Muitas vezes achamos que não temos nada a aprender
com outra pessoa, só porque ela é mais jovem ou mais inculta do que nós. Mas
“ninguém é tão ignorante que não possa ensinar, nem tão sábio que não possa
aprender”. Às vezes pensamos: já sei o que esta pessoa está ensinando, porque
tenho que ouvir isso e obedecer? Simples! Talvez não precisamos aprender o que nos
estão ensinando, mas precisamos aprender a humildade. E a humildade nada mais é
do que tomar consciência de que somos pó e ao pó retornaremos.
Contemplemos Jesus na Hóstia Pequenina. Por acaso
achamos que é pouca coisa Deus ter Se encarnado como ser humano, depois ter Se
tornado um pão, ficando sujeito a tantos abusos e sacrilégios?! O Onipotente e
Todo-Poderoso Se humilha e Se sujeita a aparecer como o que não é... E nós, porque
queremos parecer o que não somos, e porque nos afligimos quando nos humilham? O
tamanho da pena que sentimos ao ser humilhados, representa o tamanho do orgulho
que ainda existe em nós. No livro “Imitação de Cristo” diz que se nos afligem
por algo que não temos culpa, devemos lembrar dos outros motivos pelos quais
mereceríamos sofrer.
Quando Jesus fala a Nicodemos: “quem não nascer de
novo não poderá ver o Reino de Deus” (Jo 3,3), sabemos que Ele não fala de um
nascimento físico, mas espiritual. Mas reflitamos: quem nasce é grande ou
pequeno? Ninguém nasce adulto! Assim, para ter esse novo nascimento no Espírito
Santo e ganhar o Reino dos Céus, é preciso ser pequeno, ser simples como uma criança,
na humildade, pureza, docilidade (cf. Lc 18,17). O Padre Léo dizia: “O Céu é
para quem sonha grande, pensa grande, e tem a coragem de viver pequeno”. Quando
estiver difícil de viver a caridade com alguém, recorramos ao auxílio dos Santos
Anjos, e com um movimento espiritual, abracemos o Anjo da pessoa que ainda não
conseguimos amar, e deixemos que a semente de trigo da humildade cresça e “frutifique
em cem por um”, para que nosso Anjo possa, feliz, apresentar-nos a Deus na vida
eterna.
Voltemos à meditação
inicial: como será nossa passagem para a vida eterna? Lembremos que as frases
bonitas da Bíblia e dos santos, antes de terem sido ditas, foram vividas... E
nós? Qual será a “frase bonita” que nossa vida irá refletir para os outros? “No
entardecer da vida, seremos julgados sobre o amor” (São João da Cruz). “Se
compreenderdes estas coisas, sereis felizes, sob a condição de as praticardes”
(Jo 13,17).